Imagina se a canção brasileira fosse dar seu depoimento sobre o Brasil de hoje, sobre o Rio de Janeiro, uma de suas cidades amadas – igual ela fez a vida inteira. Não seria algo feio porque há amor pelo Brasil, pelo Rio, e quando existe amor a beleza é inevitável. Mas há melancolia: aquela tristeza de toda boa canção (mesmo as mais leves e belas) mas também, e neste caso principalmente, a tristeza do tempo que ela canta.
Pois foi em nome da canção brasileira que três de seus decanos, Ivan Lins, Marcos Valle e Joyce Moreno se juntaram pela primeira vez para cantar o Brasil, chorar pelo Brasil, tentar proteger e amar o Brasil, pelo Rio natal dos três, em melodia e letra, explícita:
“Quem me dera te proteger, ai/ Desses tantos perigos/ Àquela que é mãe pra nós/ E que nos criou com sua voz”
“Casa Que Era Minha”, a nova canção, é antes de tudo um fascinante exercício de estilo: Ivan Lins apresentou o tema principal, triste, com sua característica beleza melódica e harmonia inusitada, personalíssima; Marcos Valle, mestre no assunto, desenvolveu a segunda parte como se um sol da manhã iluminasse a canção, seguindo e ampliando a ideia musical do tema; Joyce Moreno escreveu a letra urgente e (e)terna sobre o nosso angustiante momento, renovando a esperança, descrevendo o Rio e o Brasil de hoje de forma melancólica como pede a melodia da primeira parte (“Minha bem amada/ Casa que era minha/ Quem te maltratou/ Te fez tão sozinha/ Diga”) e encontrando uma fresta de solução na segunda parte solar (“Quem me dera te proteger, ai…”).
Marcos produziu e gravou o piano, Joyce o violão, ao teclado Ivan fez as cordas – auxiliados pela cozinha de Alberto Continentino (baixo) e Renato “Massa” Calmon (bateria) e o solo de Flugelhorn de Jessé Sadoc, três dos maiores músicos da atualidade nos seus instrumentos. O samba – não fossem eles compositores cariocas – é cantado pelos três. E é como se aquela magia se desse de novo: o Brasil tem uma canção sobre o triste ano de 2021, inspirando-se no passado, projetando um futuro, dando um depoimento do Brasil para o mundo, coisa que esses três compositores fazem com excelência há mais de 50 anos, a primeira vez juntos.
Não exagero ao chamá-los, os três, de decanos da música brasileira e de porta-vozes do Rio e do Brasil, pela música. No Leblon, Marcos Valle foi, mais do que vizinho de porta de Tom Jobim na famosa rua Codajás nos anos 60, mas um seu filho na chamada segunda geração da Bossa Nova; do Posto 6, Copacabana, Joyce é uma afilhada musical e poética de Vinicius de Moraes – o verso “Ó cidade amada/Minha patriazinha” não é mero acaso; e da Tijuca, Zona Norte, vizinho do Salgueiro, sua Escola, Ivan surgiu no bojo do Movimento Artístico Universitário de parceiros como Aldir Blanc e Gonzaguinha, e da canção de protesto. Em carreiras individuais bem sucedidas, os eles vêm cantando o Brasil no tempo e – os três, talvez mais do que qualquer outro – são embaixadores da música brasileira no mundo, todo ano fazem o circuito Estados Unidos, Europa e Japão levando a canção brasileira exatamente como produzida aqui, no belo e sofrido Rio de Janeiro mais uma vez descrito em uma canção: “Musa abandonada/ Por tudo que tinha/ Quem vai te salvar/ Das aves daninhas/ Diga”.
Joyce costuma dizer e comprovar que “a MPB tem resposta pra tudo”. O samba novo “Casa que era minha”, primeira parceria de Joyce, Marcos Valle e Ivan Lins é, portanto, a resposta da MPB ao tempo da epidemia de Covid-19, do caos político, do abandono, da desesperança: “Ó cidade amada/ Minha patriazinha /Deixa eu te abraçar/ Sonhar que inda és minha/ Minha”.
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