Para você, talvez Maria da Penha seja apenas o nome de uma lei que protege as mulheres, para mim, Maria da Penha é uma mulher inteligente, íntegra, culta, batalhadora e corajosa, que está numa cadeira de rodas porque seu ex-marido e agressor acertou-a com um tiro de espingarda enquanto ela dormia, deixou-a paraplégica, simulou um assalto que o livrou inicialmente de qualquer suspeita. Maria da Penha passou meses em um hospital, quando voltou para casa, ele a isolou de parentes e amigos, depois sabotou um chuveiro elétrico e tentou matá-la eletrocutada. Penha decidiu, então, abandonar o casamento de vez.
Maria da Penha contou sua história em um livro Sobrevivi, Posso Contar e lutou para que o Brasil tivesse uma lei específica para proteger a mulher da violência doméstica, aprovada há mais de uma década e leva o seu nome.
Talvez você também não tenha ouvido falar sobre mim. Fui casada por mais de 13 anos com um homem dissimulado. Eu entrei numa teia de violência que me deixou sem chão. Violência moral, psicológica, patrimonial e, por fim, a violência física. Até que consegui me separar. Hoje luto pelos meus direitos, especialmente em ter meus filhos comigo, sim porque ele quer me tirar tudo!
Estar ao lado dela foi muito emocionante porque sempre a admirei e sou grata por sua luta, por sua força. Encontrá-la me mostrou que não estou só com minha dor, que ela, eu e tantas outras mulheres sofrem diariamente com esta mazela social. Vê-la ali tão perto me trouxe a sensação de presenciar minha heroína se materializar.
Maria da Penha é forte porque a vida exigiu que se transformasse em uma guerreira, ao mesmo tempo em que, através dos seus gestos suaves, ela transmite paz, docilidade ao falar e semblante de quem não guarda ódio, mas apenas quis e quer justiça.
Há um intervalo de 35 anos entre o caso dela e o meu, fato que comprova que a violência doméstica é a triste realidade de um Brasil que ocupa o quinto lugar mundial que mais mata suas mulheres.
Maria da Penha e eu temos muito mais em comum que o fato de termos convivido com homens violentos. Somos sobreviventes e ainda podemos contar uma história, ainda temos voz, ainda temos força, ainda temos filhos, ainda temos vida. Infelizmente outras mulheres não tiveram a mesma sorte e já não podem fazer o mesmo. Que sejamos, juntas, a voz de todas. Estamos vivas e nossa condição financeira, além do nível cultural, atestam que a violência doméstica não escolhe etnia, religião, escolaridade e nem classe social.
O que mais impressiona e entristece é que essa realidade não é exclusiva minha e nem da Maria da Penha, mas da mulher brasileira. Todas nós temos muito em comum.
Os números são capazes de chocar: em 2017 foram registrados no Brasil 1.133 feminicídios, 221.238 casos de violência doméstica, uma média de 606 casos por dia, sendo que, em 61% deles, o agressor é um conhecido e em 19% das vezes, eram companheiros atuais das vítimas. E mais! 43% das agressões ocorreram dentro das casas das vítimas.
A melhor forma de combatermos a violência doméstica é falar sobre ela e esse talvez tenha sido o grande ganho das leis Maria da Penha e do Feminicídio, porque elas tiraram o problema da invisibilidade. Além da punição mais grave para os que cometerem crimes contra as mulheres, a tipificação é uma oportunidade para dimensionar a violência contra as mulheres no país.
Maria da Penha e eu temos cicatrizes, sim, no corpo e na alma, cada dia para nós é um recomeço, cada pequena alegria é uma superação, por nós e por todas lutamos ontem, hoje e lutaremos sempre. E se o machismo dita para o Brasil, um manual de Como destruir uma mulher,estamos – eu e Maria da Penha – aqui para dizer: Só que Não!
Michella Marys.